A relação dos brasileiros com as águas é marcada pela ambiguidade. Berço das cidades, viraram a cloaca pública, mas também foram a área de descanso e a fonte de milagres. Hoje, já se tornam motivo para conflitos
“A água anônima sabe todos os meus segredos. A mesma recordação sai de todas as fontes. Uma gota d’água potente basta para criar um mundo e para dissolver a noite.” Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos
Vielas tortuosas, terrenos irregulares, súbitas enchentes e pequenas planícies com uma avenida; estes são alguns dos indícios de que, ali onde parece haver terra firme, na verdade há água – ou havia até a chegada do asfalto. País de grandes rios e pequenos córregos, lagoas e baías, várzeas e pântanos, o Brasil detém a maior reserva de água doce não congelada do mundo – 12%, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), sem falar no Aquífero Guarani [1]. Mas aterros, barragens, assoreamento, canalizações e poluição, mais do que a abundância, são um traço distintivo da água no Brasil.
[1] Localizado a cerca de 1.500 metros de profundidade sob as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, além de partes do Paraguai, do Uruguai e da Argentina, é uma das maiores reservas de água doce do mundo, com 1,2 milhão de quilômetros quadrados
Autor do livro Ecologizando a Cidade e o Planeta (Editora C/Arte), o arquiteto Maurício Andrés Ribeiro relata um caso que expõe de modo singelo um traço da relação cotidiana do brasileiro com a água. Na Amazônia, uma mãe repreende o filho, dizendo: “Meu filho, não jogue lixo no quintal, porque aí não é o rio”. Desde que foram construídas, as cidades brasileiras tiveram uma atitude utilitarista, mas ambígua com os rios: eles foram a cloaca pública, natural e aberta, que levou para longe dos olhares o esgoto e a sujeira. Mas também foram área de lazer e descanso, enquanto não estavam fétidos demais para a convivência humana.
AMOR E ÓDIO
O livro Cidade das Águas (Editora Senac), da historiadora Denise Sant’Anna, descreve essa ambiguidade na São Paulo do século XIX. A relação com as águas era marcada por um forte caráter afetivo: algumas eram águas milagrosas, outras eram malditas; destas, que alguma vez pareceram trazer doença, era preciso afastar-se. Aquelas, às quais se atribuiu alguma cura, chegaram a ser consideradas milagrosas. O Rio Tamanduateí, que, juntamente com o Anhangabaú, marcava o ponto de fundação da cidade, era fonte de água potável, mas também depósito de lixo e esgoto. Hoje, ambos os rios estão canalizados e escondidos debaixo de avenidas.
“A falta de infraestrutura fazia o rio ser tudo. O que era negado era levado para o rio, então ele nunca foi incorporado abertamente ao cotidiano das pessoas, embora estivesse extremamente presente. Era um cotidiano negado!”, diz o arquiteto Vladimir Bartalini, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Há dez anos Bartalini estuda os córregos que, como os dois rios fundadores da cidade, foram escondidos: tapados por moradores e enquadrados pelo poder público. Coletivos de artistas e grupos de ativistas também passaram a se interessar pelo tema de alguns anos para cá, como o grupo Rios e Ruas, cujo mote é: “Não importa onde você esteja em São Paulo, a 200 metros deve haver um curso d’água” (mais sobre movimentos artísticos no box ao final).
A ambiguidade essencial está no fato de que as cidades brasileiras, por mais que virem as costas para a água e a escondam, também são moldadas por ela. O traçado de avenidas, a localização de praças, as vielas que cortam quarteirões ao meio, os eixos viários resultam da negociação nem sempre cordial entre os construtores das cidades e a natureza. “Não tem como não ser assim, mas o mais incrível é a negação desse casamento entre o elemento natural e a mão humana”, diz Bartalini. “Por mais que mexamos na terra, não podemos apagar por completo o que é característico dela. De um modo ou de outro, aquilo vai se manifestar. É muito fácil esquecer isso numa cidade, onde tudo parece criado por mão humana.”
“Você vê um beco, um caminho estranho, uma construção incomum, uma laje fora do lugar, vai entrando, desce, encontra uma tampa, puxa, e pronto: ali tem um córrego. Ele sempre se mostra de um jeito muito degradado e indireto”, comenta o arquiteto Arthur Cabral, membro da equipe de Bartalini. Grande parte das ocultações de rios foram feitas pelos próprios moradores, em regiões periféricas da cidade, enquanto o poder público não tinha interesse nas áreas.
Em São Paulo, bons exemplos são o Córrego Anhanguera, que nasce em Higienópolis e corre por baixo dos bairros Vila Buarque, Campos Elísios e Bom Retiro, e o Córrego Verde, que atravessa a Vila Madalena e, nas chuvas mais fortes, transforma em corredeira o Beco do Batman. “As pessoas não queriam ficar à margem de córregos, que já se poluíam. Então elas davam um jeito de tapar, cotizavam-se, faziam lajes por cima, construíam becos. Hoje, isso está incorporado à cidade, de maneira mais ou menos canhestra, mas também engenhosa”, diz Bartalini.
Outras marcas exigem um esforço maior para serem encontradas. No bairro carioca da Lagoa, na Zona Sul da cidade, uma rua faz referência ao passado quase apagado da região. A Rua Fonte da Saudade tira seu nome da bica d’água em torno da qual, ao longo do século XIX, lavadeiras portuguesas entoavam cantos em memória do país que deixaram para trás, enquanto trabalhavam à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, outrora Lagoa Sacopenapã.
Hoje, porém, o que está deixado para trás é a própria margem da lagoa, que, com sucessivos aterros, perdeu metade de sua área e teve de passar por intervenções para manter a oxigenação, evitar o assoreamento e minimizar as periódicas mortandades de peixes (leia mais aqui).
Ainda assim, a fonte de que dependia o trabalho das lavadeiras portuguesas continua no mesmo lugar, mas distante um quarteirão da lagoa. Aquilo que poderia ser mais um ponto turístico carioca, no entanto, não pode ser visitado: quando muito, da calçada é possível ver a fonte por trás das grades de um condomínio particular.
PLANTANDO ASFALTO
“As águas, ou seja: chuva, esgoto, água potável, são um dos principais pilares da formação de uma cidade, e o descuidado com a água é um descuidado com a cidade”, afirma o engenheiro hidráulico Wilson Passeto, diretor da ONG Água e Cidade, que se dedica a campanhas de conscientização sobre o consumo de água em escolas e empresas.
“Uma cidade não consiste em sair plantando asfalto por aí. Desde a origem, as cidades são quase sempre implantadas em função da disponibilidade de água”, afirma o engenheiro, lembrando que costumam ser estabelecidas na foz ou na confluência de rios.
Uma exceção entre as cidades brasileiras, que desvirtuaram seus rios, é Curitiba. A capital paranaense, desde os anos 1960, possuía um instituto de planejamento urbano que colocou parques, em vez de avenidas, em torno dos rios, o que faz com que lá não haja notícia de alagamentos. “Quando alaga, o que enche é o parque, não a rua”, diz o engenheiro. Apenas a avenida construída antes desse período, às margens do Rio Belém, sofre com cheias.
Passeto afirma que quem conhece o assunto da água conhece também algo de geologia, porque, “depois da deriva dos continentes e da ação do homem, a água é o fator mais importante na transformação das rochas e do relevo”. Embora a água tenha mobilidade demais para a abordagem direta do geólogo, nas regiões frias do mundo ela pode quase ser considerada como uma rocha. “As geleiras podem arrastar tudo, a neve pode se acumular no inverno, é uma massa incrível nas cidades e nas encostas”, comenta.
Mesmo na fluidez das chuvas tropicais, um fenômeno semelhante ocorre, muitas vezes sem que as pessoas se deem conta. “Só percebemos o efeito devastador da água quando há deslizamentos nas encostas. O deslizamento é pior que nevasca, porque a água penetra no solo e dissolve a terra”, diz Passeto, apontando para morros do Rio de Janeiro em que a ocupação desordenada leva a deslizamentos em série. Em Niterói, um deslizamento no Morro do Bumba, em 2010, matou 267 pessoas.
Passeto queixa-se do rumo que tomou o debate em torno da mudança climática, muito centrada em temas energéticos e pegada de carbono. O problema da água, afirma, ficou de lado. “A energia está em todo canto e pode ser facilmente transportada. Já a água tem uma relação muito mais estreita com os territórios e seus habitantes, e por isso é um tema essencialmente local”, afirma.
Já prevendo a generalização de conflitos em torno da água no Brasil, como o que começa a aparecer na disputa em torno do Rio Paraíba do Sul [2], entre São Paulo e o Rio de Janeiro, Passeto chama atenção para o fato de que não se trata apenas de entender de onde virá a oferta de água, tampouco de somente cuidar da demanda e do uso racional de recursos hídricos, mas também de pensar a produtividade de maneira mais ampla. “Produtividade não é só habilidade do trabalhador, mas também qualidade de vida”, diz. “Se onde o trabalhador mora falta água, ou se não tem saneamento básico, se as crianças começam a ter doenças, como Acesse rioseruas.com.br ele vai trabalhar?”
[2]Com nascente no estado paulista, o Paraíba do Sul corre pelo estado do Rio de Janeiro, abastecendo grande parte da população fluminense. Devido à crise de abastecimento em São Paulo, o governo paulista deseja retirar água do rio, suscitando protestos do estado vizinho.
Leia aqui um quadro sobre a relação com a água em outras culturas
NAS ARTES
A capacidade da água de transmitir informação – e emoção
De alguns anos para cá, grupos de pessoas e entidades começaram a procurar o reencontro com essa herança da água. Em São Paulo, artistas espalham marcas pela cidade, anunciando aos passantes em que lugares passam rios esquecidos. Esses pontos da cidade chegam a ser surpreendentes: em áreas centrais, extremamente urbanizadas, onde as ruas são retas e sólidas.
No Espírito Santo, o artista Piatan Lube realizou uma série de obras que chamam atenção para a relação das populações com a água. Em Vitória e em Florianópolis (SC), em 2011, o artista traçou com uma linha de tinta azul o perímetro original das ilhas em que as duas capitais foram construídas, antes das séries de aterros de que os moradores nem sequer têm a lembrança. Por onde passa a faixa azul, há estacionamentos, avenidas, campos de futebol. Outrora, eram mangues, restingas e enseadas.
Na exposição Aquarium, realizada em Vitória no ano passado, Piatan e o também artista Júlio Tigre (ou o Coletivo Duodreno), escolheram a água como meio para explorar o contato entre o visível e o invisível. Na exposição, o visitante era convidado a beber de um poço artesiano no local, confrontava-se com utensílios domésticos como panelas e filtros, e via a água sendo usada também para confeccionar obras. O programa da exposição afirma que a água “tem a capacidade de transferir informação, logo que a tenha obtido, tanto para outros sistemas como para organismos vivos”.
Leia mais:
O que podemos aprender com a atual crise de abastecimento, em “Nó em pingo d’água“
Em que pontos a gestão pública pode ter errado, em “A pedagogia da crise“
O que empresas têm a ver com a preservação da água (e seu próprio futuro), em “A fonte secou“
Como usar melhor o recurso natural mais precioso, em “Saídas possíveis“
Tecnologias simples e baratas que fazem a diferença em regiões áridas, em “Tecnologias ancestrais“
[:en]A relação dos brasileiros com as águas é marcada pela ambiguidade. Berço das cidades, viraram a cloaca pública, mas também foram a área de descanso e a fonte de milagres. Hoje, já se tornam motivo para conflitos
“A água anônima sabe todos os meus segredos. A mesma recordação sai de todas as fontes. Uma gota d’água potente basta para criar um mundo e para dissolver a noite.” Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos
Vielas tortuosas, terrenos irregulares, súbitas enchentes e pequenas planícies com uma avenida; estes são alguns dos indícios de que, ali onde parece haver terra firme, na verdade há água – ou havia até a chegada do asfalto. País de grandes rios e pequenos córregos, lagoas e baías, várzeas e pântanos, o Brasil detém a maior reserva de água doce não congelada do mundo – 12%, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), sem falar no Aquífero Guarani [1]. Mas aterros, barragens, assoreamento, canalizações e poluição, mais do que a abundância, são um traço distintivo da água no Brasil.
[1] Localizado a cerca de 1.500 metros de profundidade sob as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, além de partes do Paraguai, do Uruguai e da Argentina, é uma das maiores reservas de água doce do mundo, com 1,2 milhão de quilômetros quadrados
Autor do livro Ecologizando a Cidade e o Planeta (Editora C/Arte), o arquiteto Maurício Andrés Ribeiro relata um caso que expõe de modo singelo um traço da relação cotidiana do brasileiro com a água. Na Amazônia, uma mãe repreende o filho, dizendo: “Meu filho, não jogue lixo no quintal, porque aí não é o rio”. Desde que foram construídas, as cidades brasileiras tiveram uma atitude utilitarista, mas ambígua com os rios: eles foram a cloaca pública, natural e aberta, que levou para longe dos olhares o esgoto e a sujeira. Mas também foram área de lazer e descanso, enquanto não estavam fétidos demais para a convivência humana.
AMOR E ÓDIO
O livro Cidade das Águas (Editora Senac), da historiadora Denise Sant’Anna, descreve essa ambiguidade na São Paulo do século XIX. A relação com as águas era marcada por um forte caráter afetivo: algumas eram águas milagrosas, outras eram malditas; destas, que alguma vez pareceram trazer doença, era preciso afastar-se. Aquelas, às quais se atribuiu alguma cura, chegaram a ser consideradas milagrosas. O Rio Tamanduateí, que, juntamente com o Anhangabaú, marcava o ponto de fundação da cidade, era fonte de água potável, mas também depósito de lixo e esgoto. Hoje, ambos os rios estão canalizados e escondidos debaixo de avenidas.
“A falta de infraestrutura fazia o rio ser tudo. O que era negado era levado para o rio, então ele nunca foi incorporado abertamente ao cotidiano das pessoas, embora estivesse extremamente presente. Era um cotidiano negado!”, diz o arquiteto Vladimir Bartalini, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Há dez anos Bartalini estuda os córregos que, como os dois rios fundadores da cidade, foram escondidos: tapados por moradores e enquadrados pelo poder público. Coletivos de artistas e grupos de ativistas também passaram a se interessar pelo tema de alguns anos para cá, como o grupo Rios e Ruas, cujo mote é: “Não importa onde você esteja em São Paulo, a 200 metros deve haver um curso d’água” (mais sobre movimentos artísticos no box ao final).
A ambiguidade essencial está no fato de que as cidades brasileiras, por mais que virem as costas para a água e a escondam, também são moldadas por ela. O traçado de avenidas, a localização de praças, as vielas que cortam quarteirões ao meio, os eixos viários resultam da negociação nem sempre cordial entre os construtores das cidades e a natureza. “Não tem como não ser assim, mas o mais incrível é a negação desse casamento entre o elemento natural e a mão humana”, diz Bartalini. “Por mais que mexamos na terra, não podemos apagar por completo o que é característico dela. De um modo ou de outro, aquilo vai se manifestar. É muito fácil esquecer isso numa cidade, onde tudo parece criado por mão humana.”
“Você vê um beco, um caminho estranho, uma construção incomum, uma laje fora do lugar, vai entrando, desce, encontra uma tampa, puxa, e pronto: ali tem um córrego. Ele sempre se mostra de um jeito muito degradado e indireto”, comenta o arquiteto Arthur Cabral, membro da equipe de Bartalini. Grande parte das ocultações de rios foram feitas pelos próprios moradores, em regiões periféricas da cidade, enquanto o poder público não tinha interesse nas áreas.
Em São Paulo, bons exemplos são o Córrego Anhanguera, que nasce em Higienópolis e corre por baixo dos bairros Vila Buarque, Campos Elísios e Bom Retiro, e o Córrego Verde, que atravessa a Vila Madalena e, nas chuvas mais fortes, transforma em corredeira o Beco do Batman. “As pessoas não queriam ficar à margem de córregos, que já se poluíam. Então elas davam um jeito de tapar, cotizavam-se, faziam lajes por cima, construíam becos. Hoje, isso está incorporado à cidade, de maneira mais ou menos canhestra, mas também engenhosa”, diz Bartalini.
Outras marcas exigem um esforço maior para serem encontradas. No bairro carioca da Lagoa, na Zona Sul da cidade, uma rua faz referência ao passado quase apagado da região. A Rua Fonte da Saudade tira seu nome da bica d’água em torno da qual, ao longo do século XIX, lavadeiras portuguesas entoavam cantos em memória do país que deixaram para trás, enquanto trabalhavam à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, outrora Lagoa Sacopenapã.
Hoje, porém, o que está deixado para trás é a própria margem da lagoa, que, com sucessivos aterros, perdeu metade de sua área e teve de passar por intervenções para manter a oxigenação, evitar o assoreamento e minimizar as periódicas mortandades de peixes (leia mais aqui).
Ainda assim, a fonte de que dependia o trabalho das lavadeiras portuguesas continua no mesmo lugar, mas distante um quarteirão da lagoa. Aquilo que poderia ser mais um ponto turístico carioca, no entanto, não pode ser visitado: quando muito, da calçada é possível ver a fonte por trás das grades de um condomínio particular.
PLANTANDO ASFALTO
“As águas, ou seja: chuva, esgoto, água potável, são um dos principais pilares da formação de uma cidade, e o descuidado com a água é um descuidado com a cidade”, afirma o engenheiro hidráulico Wilson Passeto, diretor da ONG Água e Cidade, que se dedica a campanhas de conscientização sobre o consumo de água em escolas e empresas.
“Uma cidade não consiste em sair plantando asfalto por aí. Desde a origem, as cidades são quase sempre implantadas em função da disponibilidade de água”, afirma o engenheiro, lembrando que costumam ser estabelecidas na foz ou na confluência de rios.
Uma exceção entre as cidades brasileiras, que desvirtuaram seus rios, é Curitiba. A capital paranaense, desde os anos 1960, possuía um instituto de planejamento urbano que colocou parques, em vez de avenidas, em torno dos rios, o que faz com que lá não haja notícia de alagamentos. “Quando alaga, o que enche é o parque, não a rua”, diz o engenheiro. Apenas a avenida construída antes desse período, às margens do Rio Belém, sofre com cheias.
Passeto afirma que quem conhece o assunto da água conhece também algo de geologia, porque, “depois da deriva dos continentes e da ação do homem, a água é o fator mais importante na transformação das rochas e do relevo”. Embora a água tenha mobilidade demais para a abordagem direta do geólogo, nas regiões frias do mundo ela pode quase ser considerada como uma rocha. “As geleiras podem arrastar tudo, a neve pode se acumular no inverno, é uma massa incrível nas cidades e nas encostas”, comenta.
Mesmo na fluidez das chuvas tropicais, um fenômeno semelhante ocorre, muitas vezes sem que as pessoas se deem conta. “Só percebemos o efeito devastador da água quando há deslizamentos nas encostas. O deslizamento é pior que nevasca, porque a água penetra no solo e dissolve a terra”, diz Passeto, apontando para morros do Rio de Janeiro em que a ocupação desordenada leva a deslizamentos em série. Em Niterói, um deslizamento no Morro do Bumba, em 2010, matou 267 pessoas.
Passeto queixa-se do rumo que tomou o debate em torno da mudança climática, muito centrada em temas energéticos e pegada de carbono. O problema da água, afirma, ficou de lado. “A energia está em todo canto e pode ser facilmente transportada. Já a água tem uma relação muito mais estreita com os territórios e seus habitantes, e por isso é um tema essencialmente local”, afirma.
Já prevendo a generalização de conflitos em torno da água no Brasil, como o que começa a aparecer na disputa em torno do Rio Paraíba do Sul [2], entre São Paulo e o Rio de Janeiro, Passeto chama atenção para o fato de que não se trata apenas de entender de onde virá a oferta de água, tampouco de somente cuidar da demanda e do uso racional de recursos hídricos, mas também de pensar a produtividade de maneira mais ampla. “Produtividade não é só habilidade do trabalhador, mas também qualidade de vida”, diz. “Se onde o trabalhador mora falta água, ou se não tem saneamento básico, se as crianças começam a ter doenças, como Acesse rioseruas.com.br ele vai trabalhar?”
[2]Com nascente no estado paulista, o Paraíba do Sul corre pelo estado do Rio de Janeiro, abastecendo grande parte da população fluminense. Devido à crise de abastecimento em São Paulo, o governo paulista deseja retirar água do rio, suscitando protestos do estado vizinho.
Leia aqui um quadro sobre a relação com a água em outras culturas
NAS ARTES
A capacidade da água de transmitir informação – e emoção
De alguns anos para cá, grupos de pessoas e entidades começaram a procurar o reencontro com essa herança da água. Em São Paulo, artistas espalham marcas pela cidade, anunciando aos passantes em que lugares passam rios esquecidos. Esses pontos da cidade chegam a ser surpreendentes: em áreas centrais, extremamente urbanizadas, onde as ruas são retas e sólidas.
No Espírito Santo, o artista Piatan Lube realizou uma série de obras que chamam atenção para a relação das populações com a água. Em Vitória e em Florianópolis (SC), em 2011, o artista traçou com uma linha de tinta azul o perímetro original das ilhas em que as duas capitais foram construídas, antes das séries de aterros de que os moradores nem sequer têm a lembrança. Por onde passa a faixa azul, há estacionamentos, avenidas, campos de futebol. Outrora, eram mangues, restingas e enseadas.
Na exposição Aquarium, realizada em Vitória no ano passado, Piatan e o também artista Júlio Tigre (ou o Coletivo Duodreno), escolheram a água como meio para explorar o contato entre o visível e o invisível. Na exposição, o visitante era convidado a beber de um poço artesiano no local, confrontava-se com utensílios domésticos como panelas e filtros, e via a água sendo usada também para confeccionar obras. O programa da exposição afirma que a água “tem a capacidade de transferir informação, logo que a tenha obtido, tanto para outros sistemas como para organismos vivos”.
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